Brasil Plurilíngue

PLURILINGUISMO NO BRASIL
por Gilvan Müller de Oliveira

A concepção que se tem do país é a de que aqui se fala uma única língua, a língua portuguesa. Ser brasileiro e falar o português (do Brasil) são, nessa concepção, sinônimos. Trata-se de preconceito, de desconhecimento da realidade ou antes de um projeto político - intencional , portanto - de construir um país monolíngue?

Em algum nível todos esses fatos andam juntos. Não é por casualidade que se conhecem algumas coisas e se desconhecem outras: conhecimento e desconhecimento são produzidos ativamente, a partir de ópticas ideológicas determinadas, construídas historicamente. No nosso caso, produziu-se o “conhecimento” de que no Brasil se fala o português, e o “‘desconhecimento”’ de que muitas outras línguas foram e são igualmente faladas. O fato de que as pessoas aceitem, sem discutir, como se fosse um ‘fato natural’, que o ‘português é a língua do Brasil’ foi e é fundamental, para obter consenso das maiorias para as políticas de repressão às outras línguas, hoje minoritárias.

Para compreendermos a questão é preciso trazer alguns dados: no Brasil de hoje são falados por volta de 210 idiomas. As nações indígenas do país falam cerca de 170 línguas (chamadas de autóctones), as comunidades de descendentes de imigrantes outras 30 línguas (chamadas de línguas alóctones), e as comunidades surdas do Brasil ainda duas línguas, a Língua Brasileira de Sinais - Libras - e a língua de sinais Urubu-Kaapór.

Somos, portanto, um país de muitas línguas - plurilíngue - como a maioria dos países do mundo. Em 94% dos países do mundo são faladas mais de uma língua.

Leia o artigo na íntegra:
OLIVEIRA, Gilvan M. Plurilinguismo no Brasil. Brasília: Representação da UNESCO no Brasil / IPOL, 2008. p. 3. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0016/001611/161167por.pdf>.



A POLÍTICA DE COOFICIALIZAÇÃO DE LÍNGUAS NO BRASIL
por Rosângela Morello

O município e suas potencialidades 
As características específicas do espaço municipal estão na base da política de cooficialização.

São Gabriel da Cachoeira é o município mais plurilíngue do Brasil. Em uma área de 109.184,896 km² vivem 37.300 hab. (IBGE/2010), dos quais aproximadamente 95% são indígenas de cerca de 23 etnias. Três grandes rios e seus afluentes constituem o sistema hídrico e de transporte da região. Em cada um deles uma grande língua de intercomunicação, que funciona como língua franca, constitui, juntamente com as variadas outras línguas, um sistema de plurilinguismo ativo*. As línguas Nheengatu, nos Rios Negro e Xié, Baniwa no Rio Içana e Tukano no sistema do Uaupés assumem essa função, com forte representação social. Sua cooficialização se legitima a partir destas condições históricas e são elas que ancoraram as iniciativas para implementação da lei. O mesmo será observado em relação às demais línguas cooficializadas. No Município de Tacuru, no Mato Grosso do Sul, a população falante do Guarani será dominante. Já as línguas de imigração dominam o cenário nos estados do sul e sudeste do país.

Contrariamente ao que acontece em outros países, onde observamos línguas nacionalmente compartilhadas – como é o caso do Guarani no Paraguai – ou então regionalmente funcionais – como na Espanha –, o Brasil não apresenta, além do Português e da LIBRAS, nenhuma outra língua de abrangência nacional ou mesmo regional. Por outro lado inúmeros são os municípios onde se falam majoritariamente línguas indígenas ou de imigração o que faz deles instâncias políticas e administrativas muito potentes para a gestão destas línguas. Salientando essa qualidade dos municípios, Oliveira (2007: 41) comenta que é desde o cotidiano dos serviços locais que a população “exerce sua cidadania e se relaciona com o restante da sociedade brasileira”. 

No entanto, a evidência histórica das práticas plurilíngues no Brasil e suas demandas explicitadas no próprio texto das leis se confrontou, logo de início, com uma legislação e um aparato de estado consolidados desde o ponto de vista do estado nacional monolíngue.

A tradição monolinguista do Estado brasileiro legitimou, em suas aparelhagens, apenas a Língua Portuguesa. Pouco se estruturou como campo de conhecimento sobre e nas demais línguas (cerca de 210), ficando elas, na maioria das vezes, alijadas dos mecanismos e instrumentos nacionais de análise e de promoção da educação, cultura, ciência ou tecnologia. Mesmo as línguas indígenas, com espaços educacionais e culturais diferenciados e constitucionalmente garantidos, não possuíam um aparato jurídico específico para um adequado planejamento das políticas linguísticas para além do campo educacional (MORELLO & SEIFFERT, 2011). 

Só recentemente, sob o impulso de medidas de proteção e salvaguarda da diversidade cultural (Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, UNESCO, 2005) e de garantias de direitos das minorias étnicas e linguísticas em inúmeras convenções, entre as quais, a da Organização Internacional do Trabalho (OIT), as línguas, em sua diversidade, entraram na agenda política dos Estados. 

No Brasil, o primeiro avanço notável se deu com a Constituição Federal de 1988, que reconheceu aos indígenas o direito à cidadania, à sua cultura e à sua língua. No entanto, as inúmeras línguas de imigrantes (Talian, Italiano, Alemão, Ucraniano, Polonês...), os crioulos (Karipuna e Galibi-Marworno), as línguas de sinais (LIBRAS e Kaapor) e as afro-brasileiras permaneceram no silenciamento (MORELLO & SEIFFERT, 2011). Este panorama foi modificado, em nível nacional, apenas com a implementação da política de Reconhecimento e Registro de todas as línguas praticadas no Brasil através do Inventário Nacional da Diversidade Linguística do Brasil (INDL), instituído pelo Decreto no. 7.387/2010. De acordo com o relatório do Grupo de Trabalho da Diversidade Linguística (GTDL), a política de Reconhecimento e Registro contempla todas as línguas que “tenham relevância para a memória e identidade dos grupos que compõem a sociedade Brasileira, sejam veículo de transmissão cultural e faladas no território nacional há pelo menos três gerações (ou 75 anos)” (Relatório do GTDL, 2007, p. 11).

Esta escalada em prol do reconhecimento das línguas no âmbito das políticas públicas nacionais reflete, na verdade, um reposicionamento do Estado brasileiro diante da diversidade linguística. Por outro lado, esse reposicionamento tem como pilar um processo de manutenção de um plurilinguismo ativo e constitutivo da sociedade brasileira, consolidado em âmbitos locais, muitas vezes por vínculos comunitários e familiares estruturantes das relações, inclusive de parentesco. São estas inúmeras comunidades distribuídas em quase uma centena de municípios brasileiros que formulam, agora, suas demandas, manifestando-as para além das tradicionais práticas culturais.

Os municípios, espaços com funções jurídicas e administrativas específicas face às instâncias estaduais e nacionais, recebem as demandas colocando-se diante do desafio de criar as condições para atendê-las. Em vista deste contexto, o debate jurídico vai presidir as ações da cooficialização desde sua concepção, exigindo pareceres sobre a autonomia legislativa dos municípios em matéria de línguas e sobre suas atribuições nas leis de implementação de tais políticas face à Constituição Federal da República do Brasil de 1988 (BALDI, 2010; SOARES, 2008). Esse debate resultará em uma outra reviravolta no trato das línguas no Brasil, instituindo uma nova jurisprudência com capacidade legitimadora sem precedentes no Brasil.

Uma nova jurisprudência 
A cooficialização de línguas no Brasil constitui a primeira grande iniciativa de natureza jurídica e administrativa empunhada pela sociedade civil brasileira em prol da defesa e promoção de variadas línguas que a compõem. Suas implicações legais face à Constituição Federal da República do Brasil de 1988 e as incumbências administrativas dos poderes executivo, legislativo e judiciário passam a compor o cenário brasileiro. 

Por ocasião da aprovação da lei 145/2002, por São Gabriel da Cachoeira, o informe 01/2003 do IPOL Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística trouxe o texto de Gilvan Müller de Oliveira que dizia: “trata-se da primeira vez, na história do Brasil independente, que três línguas indígenas são elevadas, por lei, ao status de língua oficial”. Informando ainda que o projeto havia sido solicitado ao IPOL pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), entidade fundada em 1984, Oliveira esclarece: “Fizemos o trabalho em conjunto com o advogado Márcio Rovere e desenvolvemos o conceito de co-oficialização para sinalizar total respeito ao artigo 13 da Constituição Federal, pelo qual o português é o idioma oficial da União”  

Ao produzir uma nova leitura sobre as formas das comunidades linguísticas poderem exercer seus direitos linguísticos, sustentadas nas ações municipais e locais, a ação empunhada por São Gabriel da Cachoeira inaugura uma via de ação jurídica sem precedentes no país. Com ela terá início um profícuo debate em torno das formas de se legislar e administrar a língua como um bem patrimonial de interesse comum (BALDI, C. A., 2010; MORELLO, E. J., 2009; SILVA, P. T. G. da, 2011; SOARES, I. V. P., 2008). 

No parecer jurídico sobre a cooficialização da língua pomerana no Município de Santa Maria do Jetibá, no Espírito Santo, ao tratar da língua como patrimônio cultural imaterial e da competência do Município para legislar sobre proteção a bens culturais, descrevendo também elementos para maior eficácia da lei, Evandro Morello (2009) afirma: 

A possibilidade do município legislar sobre normas de proteção do patrimônio cultural está contida no artigo 30, incisos I e IX, da Constituição Federal, quando afirma: 

Art. 30. Compete aos Municípios:

I – legislar sobre assuntos de interesse local
.........................................
IX – proteger o patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

Desse modo, as competências legislativas do município caracterizam-se pelo princípio da predominância do interesse local (art. 30, inciso I, da CF), presumindo-se constitucionalmente como interesse local a proteção do patrimônio histórico-cultural local (hipótese descrita no artigo 30, inciso IX). Vale lembrar que a Constituição do Estado do Espírito Santo repete o texto da Constituição Federal, consagrando essa mesma competência aos Municípios do Estado, conforme estabelecido em seu artigo 28, incisos I e X.

Estabilizadas as linhas diretrizes que garantem aos municípios legislar sobre tal matéria, a cooficialização de línguas passa a se definir como um corpo de normas e instrumentos que fazem dela uma verdadeira tecnologia social disponível para toda e qualquer comunidade linguística que dela deseje fazer uso.

A política de cooficialização no futuro das línguas
Incorporando uma reivindicação histórica pelo direito à diversidade, vitalizando os espaços locais – municipais – através do debate, do fortalecimento e da instalação de novas práticas sociais em prol desses direitos e estabelecendo princípios jurídicos para a consecução das ações, a política de cooficialização das línguas no Brasil ganha terreno e representatividade.

Além da dinâmica própria que essa política vem assumindo nos diferentes municípios – por exemplo, alguns, como Santa Maria do Jetibá, aprofunda fortemente o debate e a perspectiva de planejamento de políticas públicas com base em um censo linguístico (este é o primeiro município brasileiro a realizar esse tipo de levantamento), outros primeiramente replicam a lei e depois consideram outros fatores para sua implementação – a articulação dessa política com o Inventário Nacional da Diversidade Linguística - INDL inaugura uma via muito profícua para o fomento das línguas brasileiras. Primeira política linguística pública de abrangência nacional voltada para a salvaguarda e promoção das cerca de 210 línguas praticadas no Brasil, o INDL tem por objetivo conhecer a realidade linguística brasileira, ativando uma ampla discussão sobre a categoria de línguas brasileiras, sobre a metodologia de inventariar línguas e sobre as ações necessárias ao fomento das línguas. A oficialização qualifica esse quadro, trazendo para a vida política a(s) língua(s) falada(s) pela maioria dos habitantes de um município, evidenciando desde essa base local os aspectos que fazem dela(s) referência(s) cultural(is) e política(s) para o mundo de todos. 

Desde esse quadro histórico, a política de cooficialização implementada no Brasil pode dialogar com as mais de trezentas línguas dos países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa - CPLP. O entendimento comum de uma história que precisa ser recontada na perspectiva de todos, compartilhada na diversidade e não mais no silenciamento e proibição das línguas, e a solidariedade política que tem marcado muitas das ações deste bloco de países sinalizam favoravelmente para a ampliação de espaços de diálogos que agora coloquem o foco também na sustentabilidade das línguas e dos conhecimentos que elas engendram e veiculam. Esse diálogo é tanto mais fundamental quando observamos as novas configurações da economia do conhecimento. Cada vez mais essa economia é dependente de redes de comunicação, e portanto, das línguas, cujo futuro merece, por isso, ser discutido. 

Nota:
* Oliveira (2010) chama atenção para inviabilidade de, neste contexto, se usar noções como língua primeira e segunda língua, mediadas quase sempre pela centralidade de uma concepção de sujeito monolinguisticamente constituído.

Leia o artigo na íntegra:
MORELLO, Rosângela. A Política de Cooficialização de Línguas no Brasil. Platô - Revista do Instituto Internacional da Língua Portuguesa, v. 1, p. 8-17, 2012. Disponível em: <http://www.youblisher.com/p/783318-Plato-Volume-1-N-1-Coloquio-de-Maputo-V1-2/>.



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